Indubitavelmente, o estabelecimento de relações entre a memória e os problemas de aprendizagem não pode desconsiderar os aspectos tratados por Estrela e Ribeiro (2012). Na análise que fazem sobre as relações existentes entre a memória e a aprendizagem as autoras apontam importantes reflexões que precisam ser consideradas para melhor entender como a memória está intimamente ligada à aprendizagem e, portanto, entender a sua relação com os problemas que podem surgir nesse processo.
Concebendo a memória com uma função psicológica superior, função inteligente, que permite aos seres humanos e animais aproveitar experiências já vividas no processo de aquisição de novos conhecimentos e na resolução de problemas (p.144) as autoras, a partir do estudo de alguns modelos teóricos que relacionam memória e aprendizagem e da conexão entre processos mnemônicos e o ato de aprender, esclarecem que a memória difere da aprendizagem porque a primeira refere-se ao processo de aquisição de informações e a segunda considera também a retenção e a recordação. (p.141-142).
Para elas, a memória está presente em todo processo de aprendizagem e a evocação de um conteúdo aprendido, a ser lembrado, seu esquecimento ou extinção é determinado pela qualidade do processo de aprendizagem que envolveu a apropriação desse conteúdo pelo indivíduo.
Não é por acaso, então, que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores é favorecido pela repetição e retomada de conteúdos armazenados na memória. Esse processo de repetição e retomada consolida, segundo as autoras, a memória e contribui para uma construção mais sólida do conteúdo adquirido.
Elas identificam assim, a importância da memória no estabelecimento de relações entre os conhecimentos prévios e o conhecimento novo, a ser adquirido. É a memória que permite o estabelecimento dessas relações e o avanço no processo de aprendizagem.
Mas a memória pode falhar temporariamente. Stress, cansaço, questões emocionais podem prejudicar os alunos na evocação e ou recordação de conteúdos, lembranças dolorosas que se relacionam com o presente podem bloquear o processo de aprendizagem, cenário este em que problemas de aprendizagem podem se desenvolver.
Quem não tem uma experiência que pode exemplificar a dificuldade na evocação, recordação de conteúdos na vida escolar? Ou até mesmo um bloqueio no processo de aprendizagem ocasionado por uma lembrança dolorosa?
O interesse por investigar os fatores que interferem na recordação de conteúdos aprendidos e a utilização do método de pesquisa bibliográfica, considerando os campos da neurociência, psicologia e educação levaram as autoras a observar que, é por meio da memória que os conhecimentos armazenados podem ser transmitidos, constituindo uma memória coletiva, carregada de cultura, num determinado grupo social. Nesse processo de transmissão e mediação cultural entre gerações, as autoras se apoiam nas considerações de Fonseca (2007) e afirmam a importância da memória para a continuidade da humanidade, para o processamento de informações e consolidação da aprendizagem.
Todas essas considerações, tecidas por elas, nos auxiliam a posicionar adequadamente a importância da memória no processo de aprendizagem bem como identificar seu lugar na relação que estabelece com os problemas de aprendizagem. Quando esses últimos surgem devem ser analisados considerando o papel da memória em sua constituição para melhor proceder na sua resolução.
Estrela e Ribeiro (2012) indicam a contribuição dos estudos sobre memória, desenvolvidos na área da neurociência, referentes às teorias sobre o cérebro, sua fisiologia e bioquímica e o que pode ser observado a partir de exames de neuroimagem. Apoiando-se em Izquierdo (2006), elas afirmam que a lembrança de uma informação não é igual à realidade. O cérebro converte a realidade em sinais elétricos e bioquímicos e no processo de recordação são traduzidos pelos neurônios possibilitando aos nossos sentidos a interpretação como pertencentes a realidade. (p.146)
Esses novos estudos contribuíram também para a identificação de novos tipos e formas de memória. Segundo as autoras, a memória pode ser classificada considerando sua função, seu tempo e seu conteúdo.
Em relação à função e ao tempo, elas indicam dois tipos. O primeiro tipo é a memória de curto prazo que verifica se um tipo de informação deve ser armazenado e retido para transformação em um segundo tipo de memória, a de longo prazo.
Essa memória de curto prazo, também chamada de memória de trabalho, faz uma busca em todo o cérebro para verificar se a informação é nova e deve ser aprendida, se deve ser constituída em uma nova memória. Se sim, inicia-se a fase de armazenamento, configurando um outro tipo de memória, a de longa duração.
Em relação ao conteúdo, são dois tipos: memórias declarativas e memórias procedurais. As declarativas são duas: as episódicas, também chamadas de autobiográficas que remetem aos fatos dos quais participamos e as semânticas que nos remetem aos conhecimentos gerais. As memórias procedurais, por sua vez, constituem as memórias que se referem as habilidades e capacidades adquiridas. Além desses tipos, as autoras indicam também o priming, memória evocada por meio de dicas. (p. 147).
Mas que relação podemos estabelecer entre esses tipos de memória e os Problemas de Aprendizagem?
Considerando as contribuições de Piaget e Vygotsky, indicadas pelas autoras, para o entendimento do processo de construção do conhecimento, devemos destacar a importância dos processos de assimilação e equilibração bem como o papel da interação, o desenvolvimento da linguagem e das funções psicológicas superiores.
Devemos destacar também as contribuições de Fernandez (1991) que se ocupa em entender porque algumas crianças, mesmo com as capacidades de assimilar, equilibrar, interagir, não conseguem desenvolver processos de aprendizagem.
Também não podemos ignorar as contribuições, que trazem as autoras, de Fonseca (1995) que concebe a aprendizagem resultante de operações neurofisiológicas que associam, combinam e organizam estímulos com respostas (p.154).
Toda a compreensão teórica, advinda dos estudos desses autores, combinada com a identificação do papel da memória no processo de aprendizagem nos leva a pensar que os processos de construção de conhecimento propostos no espaço escolar não podem ignorar a sua importância e relação.
Processos de assimilação e equilibração de novos conhecimentos, que são mediados pela linguagem e que por sua vez contribuem para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores não podem ter êxito sem a função da memória. Toda proposta pedagógica oferecida pelo espaço escolar deve considerar essa estreita ligação bem como sua pertinência e profundidade para o êxito da aprendizagem.
A garantia de um processo exitoso de construção de conhecimento não pode prescindir da compreensão do lugar que a memória ocupa nesse processo. Todo educador deve considerar a importância da memória de curto e longo prazo, por exemplo, no processo de construção de um novo conhecimento que pretende ensinar. É preciso ter clareza que a informação sobre esse novo conhecimento deve passar de uma informação armazenada na memória de curto prazo e se estabelecer numa memória de longo prazo. Para que isso aconteça deverá lançar mão de experiências significativas, nas quais a memória de trabalho reconheça a importância de armazenar aquele novo conteúdo, na memória de longa duração. Esses processos propostos pela escola, para serem significativos, deverão ser constituídos por desafios que mobilizem as ações de assimilação e equilibração, por meio de situações interativas que possibilitem que o novo conhecimento seja arquivado na memória.
Compreender a natureza das memórias declarativas, episódicas e autobiográficas, também contribui para o êxito da aprendizagem. O educador necessita entender a importância das vivências quando essas são significativas. Elas se depositam na memória e se estabelecem como conhecimento adquirido, arquivado e somam-se as memórias semânticas que se referem aos conhecimentos gerais.
Somando-se ainda a essas, as memórias procedurais também são importantes porque é a partir delas que o professor pode verificar se uma habilidade foi adquirida pelo aluno. Ter clareza da importância dos processos de repetição e retomada para o desenvolvimento de habilidades é fundamental para o desenvolvimento da aprendizagem, que pode ser verificada por esse tipo de memória.
Compreender a memória, considerando sua função, seu tempo e conteúdo, é fundamental para o êxito da aprendizagem bem como para afastar o aparecimento de problemas nesse processo. O educador que não observar a importância da memória no processo de aprendizagem bem como não identificar os tipos de memória que estão a serviço dela certamente não poderá compreender importantes aspectos que configuram os problemas e dificuldades no processo de aprendizagem.
Referências
ESTRELA, Joseneide Bezerra Cerqueira. RIBEIRO, Josenete dos Santo Falcão. Análise das Relações entre memória e aprendizagem na construção do saber. Caderno Intersaberes, v.1, n.1, jul./dez., 2012