Quando nos propomos a refletir sobre como a criança adquire conhecimento, como desenvolve sua capacidade de pensar percorrendo um processo que vai da curiosidade ao desejo de aprender, também vem logo, no campo de nossas atenções, as reflexões sobre as possíveis condições em que a inibição intelectual é constituída, aspecto fundamental que deve ser considerado na análise dos problemas de aprendizagem que envolvem a compreensão da leitura e da escrita. Para nos orientar nesse processo de reflexão o estudo de Audrey Setton Lopes de Souza, Pensando a Inibição Intelectual: perspectiva psicanalítica e proposta diagnóstica, de 1995, parece um excelente caminho que nos traz relevantes contribuições.
Para introduzir o tema, Souza parte da constatação de que as dificuldades das crianças no processo de aprendizagem somente são apresentadas como queixas nos diagnósticos psicológicos quando ela ingressa na escola, mas que Freud já se interessava pela problemática bem antes dessa criança iniciar sua vida escolar. Ele se interessava por saber como o indivíduo, desde os seus primeiros anos de vida, busca conhecer o mundo em sua volta, especialmente os objetos ligados a seus desejos – seu corpo, os pais, os irmãos. Freud observou, em seus trabalhos, como as crianças elaboram e modificam suas teorias sexuais infantis de acordo com estágio de seu desenvolvimento: os padrões da oralidade concebidos na fase oral, o modelo de retenção e expulsão, típico da fase anal, as questões das diferenças sexuais anatômicas na fase fálica. O interesse e pesquisa demonstrado por elas, conforme Freud, são mais intensamente mobilizados pelos temas que abordam como nascem os bebês, as relações sexuais de seus pais, o papel paterno na concepção, as diferenças sexuais anatômicas.
Mas a existência de uma crítica social em relação à curiosidade – aprendemos desde cedo que não se deve ser curioso, especialmente em relação aos temas ligados à sexualidade – possibilita com que as investigações infantis sejam castigadas e por decorrência a curiosidade seja inibida carregando, por sua vez, forte carga de ansiedade. O oferecimento de uma educação não-repressiva, que pudesse responder aos questionamentos das crianças, poderia evitar sintomas neuróticos e bloqueios no desenvolvimento.
Contudo, Souza nos alerta que a conotação perigosa conferida à curiosidade não é decorrente apenas da atitude dos pais, mas é observada também nas fantasias infantis. Cita, para exemplificar, Freud em Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância, (1910).
Para Freud, o pesquisador existente em Leonardo nunca libertou o artista Leonardo; pelo contrário, chegou a limitá-lo, uma vez que muitas de suas obras eram lentamente elaboradas ou mesmo abandonadas, pois, segundo Freud, o remetiam às suas primeiras experiências sexuais infantis, seus primeiros anos de vida em que viveu sozinho com sua mãe. (SOUZA, 1995,p.8)
… sua origem ilegítima e a ternura exagerada de sua mãe tiveram influência decisiva na formação de seu caráter e na sorte de seu destino, pois a repressão sexual que se estabeleceu depois desta fase de sua infância levou-o a sublimar sua libido na ânsia de saber e estabelecer sua inatividade sexual para o resto de sua vida. (FREUD, 1980, p.122 apud SOUZA, 1995, p.8)
Freud interessou-se então, a partir do caso de Leonardo, em descobrir como a repressão do instinto sexual poderia não ocasionar uma inibição intelectual. Essa repressão, para Freud, poderia ocorrer sem relegar ao inconsciente o desejo sexual instintivo. Seria pela sublimação da curiosidade que um poderoso instinto de pesquisa seria reforçado.
Na continuidade dos estudos freudianos, Souza aponta a contribuição de Melanie Klein que também se interessou, no início de seu trabalho, pelo problema da inibição intelectual. Trabalhando especificamente com crianças ela postulou, conforme Souza, a existência de um impulso, denominado por ela, de epistemofílico, que constituiria
… uma sede pulsional de saber e compreender, cujo primeiro objeto seria a mãe, seu corpo e, particularmente, o interior de seu corpo. Tal pesquisa seria modulada pelas angústias despertadas principalmente por suas fantasias agressivas e persecutórias em relação à mãe, para posteriormente serem modificadas por fantasias depressivas e reparatórias. (SOUZA, 1995, p.9)
Por isso, Souza, apoiada em Grinberg (1981), indica a importância de prestar atenção nas relações que podem ser estabelecidas entre o sujeito e o objeto, vinculados pela curiosidade, observando que na oralidade estão implicados componentes destrutivos os quais podem conferir características patológicas e inibidoras da curiosidade. Conforme a autora, o desenvolvimento psicossexual da criança é sustentado pelas concepções que ela vai construindo a partir das descobertas que faz durante o seu desenvolvimento sexual.
Contudo, Souza aponta que a criança por volta dos 6 anos de idade, ao iniciar a aprendizagem formal na escola, muito já conheceu e aprendeu sobre si e sobre o mundo que a cerca e por isso já tem condições de dirigir sua energia sexual para a aprendizagem, por exemplo, da leitura e da escrita. Assim sendo, a curiosidade e as pesquisas infantis não se limitariam no campo da sexualidade. Teríamos que atentar para o desejo de conhecimento ligado à aprendizagem.
Apoiada em Pain (1985), Souza afirma a importância da educação como forma de direcionar a pulsão e sua energia para o desenvolvimento de projetos culturais. Pela sublimação, constituída no processo de repressão da sexualidade edípica, toda a energia que era voltada para as questões sexuais agora pode ser direcionada para a aprendizagem e o conhecimento.
Assim, na fase da latência, as crianças, apoiadas num superego já incorporado, são capazes de realizar ponderações entre a necessidade e o desejo, podem adiar a satisfação ou o cumprimento de uma ação, podem prever as condições em que essa ação é possível, são capazes de avaliar as situações, os aspectos que estão em jogo, realizando assim um trabalho mental.
Considerando esses aspectos, a oportunidade de acessar o conhecimento da leitura e da escrita configura-se como um novo desafio. A capacidade que tinha antes de elaborar teorias sexuais agora é reorganizada para a de elaboração de hipóteses sobre como funciona esse novo tipo de linguagem. Souza destaca as contribuições de pesquisa de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1985). De base teórica e metodológica piagetiana, elas demonstraram como a criança em idade escolar elabora hipóteses sobre como funciona o sistema de escrita.
Por isso, com o objetivo de compreender o que mantém a criança em busca de conhecimento e, sobretudo verificar quais os fatores a impedem de aprender, Souza tentou mostrar em seu estudo como a curiosidade infantil encontra-se, primeiramente, na relação que estabelece com sua mãe (no seu corpo e seu conteúdo), depois na elaboração de suas teorias infantis. Ocupou-se ainda em saber como essa curiosidade pode dirigir-se de modo prazeroso ou com alto nível de ansiedade para a exploração do mundo que a cerca, para a possibilidade de aprender com liberdade de pensamento sobre a realidade, interna e externa. Souza ainda quis identificar quais fatores poderiam facilitar ou impedir o desenvolvimento do pensamento como recurso a ser utilizado pela criança para a elaboração de conhecimento.
Conforme Souza, muitas crianças não conseguem liberdade para pensar e por isso não conseguem superar resistências, externas e internas, refugiando-se na ignorância como forma de lidar com as suas angústias. É necessário que auxiliemos essas crianças a descobrir o que as impedem de pensar e assim a recuperarem o prazer da curiosidade.
Souza, apoiada por Freud (1900), afirma que
A passagem pelos processos psíquicos que tornam possível a utilização do pensamento, em substituição à descarga imediata da tensão, permite ao sujeito o acesso a um modo mais criativo de relação com a realidade, interna e externa, além de melhorar a qualidade de seu relacionamento com os outros e com o próprio processo de aprendizagem. Como se daria esse processo? (…) o pensamento surge a partir das transformações das modalidades de funcionamento primário. O pensamento seria ativado no processo secundário como substituto de um desejo alucinatório. (…) a evolução do processo primário ao processo secundário conduz ao aparecimento de funções essenciais para a inteligência, tais como: a atenção, a memória, o julgamento, o pensamento e a fantasia. No entanto, para alcançar o processo secundário, é também necessário passar por duras renúncias, como perda da onipotência e o abandono do princípio do prazer, como forma predominante de relacionar-se com o desprazer. (…) quando o bebê se vê perturbado por sensações desprazerosas, como a fome, por exemplo, sua primeira reação seria uma satisfação alucinatória de seus desejos, a alucinação de um objeto que satisfaria imediatamente às suas necessidades, eliminando o desprazer. (…) o pensamento desenvolve-se a serviço do teste da realidade, como um meio de tolerar as tensões e adiar a satisfação imediata, anteriormente buscada a partir da identidade perceptiva (satisfação alucinatória de desejos). A fantasia estaria subordinada apenas ao princípio do prazer, como uma das espécies de pensamento que estaria liberada do teste da realidade, permanecendo funcionando no âmbito do princípio do prazer. (Souza, 1995, p. 14-15)
Então, se a criança desenvolve o pensamento a partir do desenvolvimento do princípio de realidade, renunciando ao princípio do prazer como forma de lidar com a realização de seus desejos e, se a fantasia se configura como uma espécie de pensamento, mas, por sua vez, está liberada do teste da realidade e ainda permanece funcionado no âmbito do princípio do prazer, qual é, então, a sua importância, a sua contribuição para o desenvolvimento do pensamento?
Souza, considerando a contribuição de Segal (1982), afirma que
… não poderíamos considerar que entre fantasia e pensamento existiria uma oposição, pois a fantasia também permite ao ego sustentar a tensão sem uma descarga motora imediata, (…) a gratificação alucinatória de desejos (…) para Melanie Klein, seria uma forma de, ante a uma experiência de frustração, apelar para a fantasia do seio idealizado, o que permitiria ao bebê tolerar, com a ajuda dessa fantasia, por certo tempo, o desejo até que seja possível uma satisfação na realidade. (…) a origem do pensamento residiria no processo de testar a fantasia contra a realidade. Assim, o pensamento não se contrastaria com a fantasia e, sim, nela se fundamentaria e dela se derivaria. (…) a criança abordaria a realidade armada de suas fantasias inconsciente; ao testá-las na realidade, gradualmente aprenderia quais seriam as fantasias aplicáveis e de que forma poderiam capacitar a criança a lidar com a realidade. (Souza, 1995, p.16-17)
Tendo em vista os apontamentos apresentados, Souza recupera, então, os estudos de Melanie Klein, especialmente o conceito de pulsão epistemofílica bem como o modo como as ansiedades infantis perturbam a curiosidade intelectual. Conforme Klein as inibições da epistemofilia, principalmente as relacionadas à ansiedade dos impulsos sádicos poderiam originar sérios problemas de aprendizagem. Para Klein, a criança dirige seus primeiros impulsos e interesses para o corpo da mãe, seu próprio corpo e para os objetos que lá podem estar contidos em sua fantasia e o acesso ao caráter de tais fantasias infantis pode ser feito a partir de jogos que a criança se utiliza para representar essas fantasias de forma simbólica.
Klein, ao se ocupar com a análise de um caso, em 1930, que envolveu uma criança autista que não podia falar nem brincar, observou que “… a obstrução no processo de formação de símbolos tinha sido decorrente de uma excessiva defesa do ego contra o sadismo, o que impedira o desenvolvimento da vida de fantasia e da relação com a realidade.” (Souza, 1995, p.19). Klein, observou que os objetos de interesse dessa criança representavam simbolicamente o corpo da mãe e o pênis paterno e que o temor à agressividade em relação à eles e o medo que sentia decorrente de fantasias de castigo resultaram na inibição da agressividade e na parada de formação de símbolos. Conclui, então, que
… quando no período inicial da vida, marcado pelo sadismo, defesas prematuras e excessivas do ego contra o sadismo impedem o desenvolvimento da relação com a realidade e o desenvolvimento da vida de fantasia, então todo o movimento de exploração do corpo materno e do mundo externo fica também bloqueado impedindo que se desenvolva a relação simbólica com as coisas e objetos que representam o corpo materno, impedindo a exploração e elaboração de tais angústias e bloqueando o processo de formação de símbolos e o desenvolvimento psíquico como um todo. (Souza, 1995, p.19).
Assim sendo, as perturbações identificadas na relação estabelecida entre o ego e os objetos podem ser entendidas, conforme a autora, como perturbações no processo de formação de símbolos. Cita, considerando Segal (1982) exemplarmente, que a posição equizo-paranóide configura mecanismo de cisão, nos quais o ego procura unir-se apenas com o objeto bom e aniquila o objeto mau, produzindo, então, um sentido de realidade precário, porque projeta no objeto partes do ego e de objetos internos, obscurecendo a diferenciação entre o ego e o objeto. Entendendo que assim uma parte do ego está confundida com o objeto, o símbolo – entendido como criação realizada pelo ego – está, por sua vez, também confundido com o objeto que é simbolizado.
O desafio, manifestado pelo desenvolvimento normal, conforme Souza, seria a formação de um objeto bom interiorizado, que permitisse à criança, ante suas frustrações, suportar um pouco mais os desconfortos da frustração, sem ter que recorrer a cisão e a identificação projetiva, possibilitando, assim, uma percepção dos objetos como bons e maus ao mesmo tempo, gratificadores e frustradores, diferenciando o mundo interno do externo e reconhecendo a impossibilidade de possuir apenas o bom e aniquilar o mal.
Alcançar êxito nesse desafio, desenvolver uma posição depressiva abordada por Segal a partir dos estudos de Klein, é fundamental porque, conforme Souza,
A percepção de que tanto o amor quanto o ódio são dirigidos a um mesmo objeto (gratificador e frustrador), predominantemente amado, sua relação com ele passa a caracterizar-se pela culpa, o medo de perda, a urgente necessidade de preservá-lo e repará-lo, passando a preocupar-se em salvar o objeto amado de sua própria agressão e possessividade. Tal situação emocional é um poderoso estímulo para a criação de símbolos. (Souza, 1995, p.21.)
Se nessa experiência emocional o símbolo não é equivalente ao objeto original, se o ego não está confundido com o objeto simbolizado, é possível para a criança ampliar seu mundo e a variedade das relações de objetos, evoluir nas atividades lúdicas, desenvolver a fala, progredir intelectualmente porque agora é possível para ela expressar suas angústias e fantasias simbolicamente. Assim, na posição depressiva, a fantasia não é mais onipotente e permite a utilização do pensar.
Souza se apoia em Bion para expor o que é pensar.
O termo “pensamento” se restringiria à união de uma pré-concepção com uma frustração, isto é, com um seio não-disponível para a realização (um não-seio). (…) a ausência do seio pode desenvolver uma habilidade para imaginar que o sentimento desagradável de sentir-se frustrado não provém da experiência com um seio mau e sim um seio bom que está ausente, mas que pode retornar. Se, no entanto, a capacidade de tolerar a frustração é baixa, a experiência de “não-seio” é sentida como a presença de um seio mau, como um objeto concreto, persecutório, do qual é preciso se livrar através da evacuação. (Souza, 1995, p.23)
Indubitavelmente, a exposição de Souza (1995) sobre a relação que a criança estabelece com o conhecimento, o desenvolvimento de sua capacidade de pensar, marcado por um processo que vai da curiosidade ao desejo de aprender, contribui substancialmente para a compreensão dos aspectos que constituem a inibição intelectual. Compreender esses aspectos significa conferir qualidade ao planejamento da intervenção clínica que pretende tratar os problemas de aprendizagem decorrentes.
Mas, especialmente, as contribuições de Souza (1995) são significativas para a compreensão mais alargada das dificuldades presentes no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Para além de um processo cognitivo que envolve a compreensão do funcionamento de uma modalidade de linguagem diferente da linguagem falada, é fundamental a consideração dos aspectos emocionais que podem estar envolvidos nesse processo. A inibição intelectual pode, como vimos, bloquear a compreensão do funcionamento do sistema de escrita porque esse sistema nada mais é do que um conjunto de símbolos que representa a pauta sonora da linguagem oral. Se um dos aspectos da inibição intelectual é um bloqueio na elaboração simbólica, é possível enxergarmos aí a motivação de muitas crianças não conseguirem aprender a ler e escrever.
Indubitavelmente, não esgotamos as possibilidades de reflexão que a temática suscita desenvolver. Aqui tecemos apenas considerações iniciais que muito são significativas e que convidam ao aprofundamento.
Referência
- SOUZA, Audrey Setton Lopes de. Pensando a Inibição Intelectual: perspectiva psicanalítica e proposta diagnóstica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.