Os contos de fadas na intervenção psicopedagógica

Num tempo em que os computadores demasiadamente têm invadido o cotidiano do público infantil, as crianças continuam a se encantar pelos Contos de Fadas. Sua capacidade de permanência histórica encontra-se no poder de simbolizar e apresentar “soluções” para os conflitos inconscientes que fazem parte do universo psíquico das crianças de hoje. Com os Contos de Fadas as crianças têm a possibilidade de desenvolver um repertório muito necessário para a delimitação do que é existente e do que é imaginário. Os enigmas abordados nas narrativas dos contos conferem a condição de conhecer e compreender os mistérios do mundo e dos desejos humanos. Sensivelmente, os elementos assustadores contidos nos contos e que provocam o medo – medo de ser devorado, de ser abandonado, de nossa insignificância no mundo – ensinam as crianças a desenvolverem a curiosidade, a coragem, a enfrentar as dificuldades que a vida apresenta. Por isso, contar, ler histórias é muito mais que um modo de dar prazer às crianças. Certamente, é um jeito de apoiá-las em suas angústias e possibilitar a criação de um espaço em que elas ampliem, pela fantasia, o seu pensamento.

 

Os contos de fadas na intervenção psicopedagógica

 

As crianças acolhem inteiramente a ficção. Quanto mais mágica, mais fantástica for a história, melhor! E é por isso também que as crianças são sábias. Pela adesão que fazem ao mundo mágico dos contos elas ampliam o domínio da linguagem, tornam sua capacidade de pensar mais ágil e flexível e enriquecem o entendimento que formam sobre a realidade em que vivem. Nas narrativas desses contos, as crianças encontram elementos profundos que são verdadeiras ferramentas, potentes, que ao serem acolhidas favorecem a formação de seu caráter.

O estudo de Pina (2007) apresenta elementos bastante importantes, que devem ser considerados no exercício de compreender a importância do conto na intervenção psicopedagógica. Conforme a autora,

Conhecendo o que realmente “conta um conto”, ou seja, seu valor simbólico e psicológico, o terapeuta poderá ajudar crianças e adultos aliviando os problemas que parecem sem solução. Ao entrar em contato com bruxas, feras, dragões, ogros ou vizires que nunca estão satisfeitos (como muitos papais), os pacientes acabam percebendo que apesar de essas forças darem impressão de indestrutíveis, uma personagem de aparência frágil é capaz de derrotá-los, mostrando ser ela dotada de um grande poder. Os contos também ajudam a despotencializar a carga emocional presente nas pessoas, por deixarem de olhar seus problemas de forma tão individual. Para as crianças não é preciso nenhuma interpretação intelectual; elas não estão preocupadas com racionalizações, apenas entram na história de corpo e alma e são elas mesmas o “João e a Maria” entrando e ficando perdidos na floresta escura, tendo que descobrir recursos internos que irão ajudá-las a vencer as forças do mal. É bem verdade que para isso muitas vezes são ajudadas pelos bichos da floresta, que cuidam das tarefas psicopedagógicas como separar sementes, selecionar coisas, classificar, eleger, nomear, fazer descobertas junto às pistas, o que as crianças e os adolescentes adoram; para processar esse aprendizado precisam de muito pouca ajuda do terapeuta. (PINA, 2007, p. 5)

Os contos de fadas na intervenção psicopedagógica

 

Pina considera fundamental a possibilidade de reviver sentimentos escondidos, conferida pelo conto. Conforme a autora, projetamos nossas imagens internas nas imagens sugeridas nos contos, o que, por fim, mobiliza uma carga de sentimentos e emoções.

As imagens e figuras arquetípicas que estão presentes nos contos e mitos nos fornecem material simbólico que nos permite trabalhar em todos os estágios da vida lidando com muitos arquétipos, principalmente com a sombra, o lado escuro da personalidade, em que se encontram os aspectos desconhecidos e geralmente desprezados por nós, como a raiva, inveja, ciúmes etc. (PINA, 2007, p.6)

 

 

 

Podemos identificar que os apontamentos de Pina (2007) se aproximam das contribuições de Diana e Mário Corso (2006) quando, por sua vez, indicam que

A psicanálise sente-se à vontade no terreno das narrativas, afinal, trocando em miúdos uma vida é uma história, e o que contamos dela é sempre algum tipo de ficção. A história de uma pessoa pode ser rica em aventuras, reflexões, frustrações ou mesmo pode ser insignificante, mas sempre será uma trama, da qual parcialmente escrevemos o roteiro. Frequentar as histórias imaginadas por outros, seja escutando, lendo, assistindo a filmes ou a televisão ou ainda indo ao teatro, ajuda a pensar a nossa existência sob pontos de vistas diferentes. Habitar essas vidas de fantasia é uma forma de refletir sobre destinos possíveis e cotejá-los com o nosso. Às vezes, uma história ilustra temores de que padecemos, outras, encarnam ideais ou desejos que nutrimos, em certas ocasiões iluminam cantos obscuros do nosso ser. O certo é que escolhemos aqueles enredos que nos falam de perto, mas não necessariamente de forma direta, pode ser uma identificação tangencial, enviesada. (…) Hoje os contos de fadas são considerados coisa de criança, mas curiosamente muitos deles continuam estruturalmente parecidos com aqueles que os camponeses medievais contavam. Como foi que esses restos do passado vieram parar nas mãos das crianças de hoje? (…) velhas tramas devem ter achado razões para existir em tempos tão distintos, senão teriam perecido. São problemas e soluções de outrora, mas que surpreendentemente encontraram lugar no interesse de gente novinha em folha. Por quê? (…) Se pudermos analisar histórias infantis mais recentes, mas que já se tornaram clássicas, nascidas e consagradas ao longo do século XX, buscando nelas as novas formas que a fantasia encontrou de se conjugar, talvez possamos compreender melhor algumas coisas sobre as crianças, as famílias e as pessoas do nosso tempo. Através das fantasias que embalaram os sonhos das gerações mais recentes, deve ser possível saber algo mais sobre o tipo de gente que estamos nos tornando. (CORSO, 2006, p.21)

Com os argumentos apresentados pelos autores, não nos resta dúvida de que o psicopedagogo deve fundamentalmente conhecer a que tradição o conto pertence, deve localizar sua produção na história e na cultura e precisamente identificar os conteúdos mobilizadores de reflexão sobre a existência humana que esses contos possuem e que nos trazem diferentes pontos de vista sobre a vida. É assim que poderão, os psicopedagogos, eleger contos significativos para o trabalho psicopedagógico. Observando que os personagens desses contos potencialmente alcançam a subjetividade, o psicopedagogo terá um significativo instrumento de trabalho, altamente pertinente para o desenvolvimento psicológico, social, cognitivo e afetivo da criança que atende.

 

Os contos de fadas na intervenção psicopedagógica

 

Estudar sobre contos de fadas é, para além da possibilidade de elaboração teórica, uma oportunidade de acessar momentos significativos vivenciados na infância. Isto porque, em nosso tempo, esses contos, nas versões mais atuais, são destinados às crianças e constituem um material cultural muito rico, ao conferirem significados às experiências infantis, as quais incidem, sem dúvida, na compreensão de mundo que vão organizando no decorrer da vida. Quantas vezes, ao lermos essas histórias de “João e Maria”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Cinderela”, “Branca de Neve”, “A bela adormecida do bosque”, observamos as crianças ouvintes – leitoras sendo atravessadas por um processo de alívio de angústias.

O trabalho psicopedagógico pode ser muito exitoso se considerar os contos como ferramenta terapêutica. Espera-se, assim, que o leitor ocupado com a temática esteja inclinado a prosseguir nessa busca de significados. Fica, então, o desejo de que as considerações tecidas aqui possam significar uma contribuição para o desenvolvimento de outros enredos e narrativas que levem meninas e meninos a imaginarem as mais diferentes possibilidades aliviadoras… quem sabe talvez, como aquela do prato cheio de pão e leite que foi levado, um dia, para a vovó.

 

 

 

 

Referências

  • CORSO, Diana Lichtenstein. CORSO, Mário. Fadas no divã. Porto Alegre: Artmed, 2006.
  • PINA, Vera Márcia Gonçalves da Silva. Por trás dos Contos de Fadas. Revista Psique Ciência & Vida, São Paulo, n.22, p. 22-31, 2007.

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